Um menino de sua mãe...
(Relendo Fernando Pessoa)
Foto Internet, com a devida vénia
Este fora também um menino de sua mãe. Não se chamava Fernando, mas nem por isso deixara de ser um menino e um menino de sua mãe.
Como todos os meninos, trazia o sonho no coração e as asas de um passarinho nos olhos perdidos nos longes.
Também correu atrás das borboletas, também jogou ao berlinde e ao pião, também riu divertido com os festões baloiçando nas noites de São João, também chorou os grandes desgostos da vida quando a dentuça do rafeiro lhe furou a bola.
E também foi à escola, aprender as letras pequenas e grandes; e a juntá-las, primeiro duas a duas, p mais a é pá. E por aí adiante.
E também brigou no recreio, aprendendo a levar e a dar pancada, como nos filmes que os adultos achavam muito realistas.
Depois aprendeu a brincar com os números. Primeiro a contar, depois a somar, a subtrair, a multiplicar, a dividir. E a tabuada era uma festa. Era ensinada a cantar, tardes inteiras cantando: dois mais dois, quatro...
Depois vieram as lições da história. Ena, tantos reis! E eles faziam tudo... Tudinho. O castelo fora mandado reconstruir pelo rei D. Dinis. Antes havia um, mas ficara em ruinas com tantas batalhas. Diziam que houvera um castro, depois uma fortaleza dos romanos, depois um castelo dos mouros e depois este que está cá ainda.
Do cimo das muralhas, a gente vê a planície toda onde a moirama fizera correrias sem fim. Agora é terra de cultivo e de olivedos.
Os sobreiros e azinheiras, a que a gente chama montado, ficam mais longe um bocadinho.
Como todo o menino de sua mãe que tem a sorte de resistir à mortalidade infantil, eu deixei de ser menino porque cresci. E aí as coisas foram-se complicando. Cada vez havia mais exigências e menos carinhos.
O meu crescimento foi responsável pela morte de muitas pessoas queridas. Eu ia crescendo e elas iam morrendo.
Tal qual sucedeu com o Fernando, o dia do meu aniversário, e também todos os outros dias, que não só aquele, estavam cheios de fantasmas.
Aos poucos, comecei entendendo que se nascia para ocupar o lugar dos que morriam.
Era uma fatalidade esta dita lei da vida. Mas outras coisas novas iam aparecendo. E a gente deu em olhar para as meninas. Coisa estranha! Começámos a gostar mais de estar com elas do que de brincar ou jogar. Era a puberdade chegando.
Depois começou a luta pela sobrevivência. Saber que as coisas tinham preço e que se pagavam com dinheiro. E que o dinheiro se ganhava trabalhando.
Aqui surgiu outra interrogação: qual o sentido que a vida tem? A gente nasce e é amada. Depois morre quem nos amou. Ficamos sem ninguém. Esta infelicidade é ultrapassada quando construímos a nossa própria família, porque a outra se extingue. E assim sucessivamente.
Estas coisas aprendem-se olhando os passarinhos. E os passarinhos parece-me que são felizes nesta rotina, mas eu não sou. Morrer será triste? Ou muito triste? Eu não sei, porque nunca morri. Mas sei que é muito triste sabermos que morreram os nossos entes queridos. Que nunca mais estarão ao nosso lado. Que foram para sempre. Como nós iremos também, um dia. Todos.
José-Augusto de Carvalho
7/8 de abril de 2003.
Viana*Évora*Portugal