Terça-feira, 20 de Janeiro de 2015

ASSÉDIO SEXUAL

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José Augusto Carvalho

 

Burro por onde passa deixa a marca da ferradura.

                        

             Johnathan tinha quase sete anos. Era puro, era pequeno, era criança. Não tinha ainda sete anos.

            A escola de Johnathan, em Lexington, na Carolina do Norte, era bonita. Talvez fosse a mais bonita daquela pequena cidade americana, plantada no condado de Davidson.

             E era bonita porque Johnathan tinha quase sete anos.

            A cidade de Johnathan era pequena e era bonita. Não era talvez a menor de todas, mas era talvez a mais bonita de todas as cidades pequenas e bonitas que há nos Estados Unidos.

            E era bonita porque Johnathan tinha quase sete anos.

             A sala de aula de Johnathan era pequena. Nela só havia vinte alunos. Todos pequenos, todos crianças, todos com sete anos ou com quase sete anos. A diferença de idade entre o mais novo e o menos novo de todos não chegava a cinco meses.

            Johnathan tinha quase sete anos, e era feliz, como todos os seus colegas de classe, como todas as crianças que têm pais que as amam e lhes dão carinho.

            No dia 26 de setembro de 1996, Johnathan estava ainda mais feliz, porque era seu aniversário: ele estava completando sete anos de vida... Então ele olhou para a menina bonita que estava sentada ao seu lado, e quis manifestar sua alegria, dando-lhe um beijo no rosto.

             Mas a professora viu. A professora de Johnathan não era feliz. A professora de Johnathan  não era beijada por ninguém de sua idade. A professora de Johnathan não se lembrava mais da última vez que recebeu um beijo de alguém de seu tamanho. Por isso, a professora de Johnathan ficou com inveja e com raiva.

            A professora de Johnathan decretou que Johnathan era um menino pecador e pôs Johnathan para fora de sala. A professora de Johnathan foi à direção da escola para dizer que Johnathan tinha praticado um crime chamado “assédio sexual”. A diretora da escola de Johnathan também tinha saudades do último beijo que havia recebido, e por isso também tinha raiva e inveja das pessoas que eram amadas e não tinham vergonha de ser felizes. A porta-voz das escolas públicas de Lexington, Jane Martin, apoiou a professora e a diretora, porque o regulamento da escola é de conhecimento dos pais.

             Johnathan foi alvo de risos, de zombarias, de chacotas, de piadas. Ele vivia no país mais poderoso do mundo. Tão poderoso, que até um beijo de criança tinha sabor de pecado grave. Johnathan não podia mais ficar em Lexington, e teve de mudar-se de cidade, porque lhe haviam ensinado na escola do país mais poderoso do mundo sua primeira lição de antivida.

            A escola de Johnathan já não era mais tão bonita. Porque os sete anos de Johnathan não tinham mais o sabor da infância.

            E a cidade de Johnathan não era mais tão bonita, porque Johnathan se tornou quase um adulto, com sete anos de idade.

             Mas o país onde Johnathan morava era o mais poderoso do mundo. Até depois de velho, Johnathan poderia orgulhar-se dele.

            Alguns anos depois, num banho de mar, numa  praia do Pacífico, o adolescente Johnathan viu que uma banhista se afogava à sua frente. Nadou até ela, arrastou-a como pôde, lutando contra o mar, até o lugar em que a espuma das ondas se infiltrava na areia... Mas lembrou-se do beijo que dera numa garota bonita de sua classe, quando de seu aniversário de sete anos. E deixou de lado, na areia, a mulher que tirara das ondas.

            Johnathan  não tinha mais apenas sete anos.

            Os curiosos chegaram e notaram que a banhista não respirava mais. E perguntaram ao Johnathan por que ele não havia feito respiração boca a boca, para salvar a moça que ele tinha retirado das águas.

            Johnathan não respondeu. Talvez para não perder o resto de infância e de pureza que ainda havia em sua vida adulta.

            Porque Johnathan  não tinha mais  apenas sete anos.

            Johnathan tinha virado cidadão do mais poderoso país do mundo.

 

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José Augusto Carvalho é Professor Universitário jubilado.

Cidadão brasileiro, reside na cidade de Vitória, Estado do Espírito Santo, Brasil 



publicado por Do-verbo às 12:40
Quinta-feira, 27 de Novembro de 2014

LIÇÕES INADEQUADAS

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José Augusto Carvalho

        

         O nome cesariana, que designa a operação de parto, não tem absolutamente nada a ver com Júlio César. O nome próprio César, aliás, que deu origem ao nome genérico dos imperadores alemães e russos (kaiser e czar ou tzar, respectivamente) é de origem etrusca, e não latina. São informações de Ernout e Meillet, no seu Dictionnaire étymologique de la langue latine (Paris: Klincksieck, 1967, s.v. Caesar). O nome cesariana relaciona-se com o verbo caedo, -is, cecidi, caesum, caedere, que deu origem ao fr. ciseaux (tesoura), ao ing. scissors (tesoura), à  raiz –cida (de homicida, suicida, formicida, etc.) e a nomes como cisão, circuncisão, incisão, rescisão, precisão (corte prévio, isto é, eliminação do supérfluo), etc.

         O Dicionário etimológico da língua portuguesa, de Antenor Nascentes, confirma: antes de Júlio César, muita gente já havia nascido por meio de cesariana, inclusive Cipião, o Africano, que viveu antes de César, quando essa operação já se chamava assim.

         É comum a crença fácil na etimologia popular, que não explica nada, mas alimenta a imaginação do leigo curioso. O nome forró, por exemplo, não tem nada a ver com o inglês for all, apesar do filme com esse nome e da tradição generalizada. Forró é apenas a abreviatura de forrobodó, que for all não explica. Basta consultar o Aurélio para atestar o que digo. O Dicionário do folclore brasileiro, de Câmara Cascudo, esclarece isso, e elimina, indiretamente, essa bobagem inventada e divulgada por quem não tem conhecimento, mas tem muita imaginação.

         Aliás, é extensa a lista de falsas etimologias: sincero não tem nada a ver com “sem cera” (o sin-, de sincero, tem relação com o sim- de simples; e o –cero tem relação com –cel-, de excelso ou com  o –cer- de prócero); pontífice nada tem a ver com construtor de pontes (o pontifex latino sempre designou o sacerdote romano, sem relação com o verbo facere, fazer, e ainda menos com pons, ponte); religião nada tem a ver com o verbo ligar, mas com ler. A raiz da palavra religião se relaciona com o –lig- de diligente ou inteligente ou com –leg-, lec-, -lei, le- de eleger, lecionar, eleitor e ler, respectivamente. O re- inicial de religião é prefixo oriundo de red(i), vir, voltar, que aparece em redivivo ou relíquia.   Uma consulta ao Dictionnaire étymologique de la langue latine, de Ernout & Meillet atestará essas informações.

Circulam na Internet versões “corrigidas” de expressões populares e até da trova popular – “Batatinha quando nasce/ se esparrama pelo chão. / Menininha quando dorme / põe a mão no coração.” O segundo verso foi corrigido:  “batatinha quando nasce espalha a rama pelo chão” (o correto mesmo é “se esparrama pelo chão”). “Cuspido e escarrado” virou “esculpido e encarnado” (lição difundida por Duarte Nunes de Lião, no séc. XVI; o correto é realmente “cuspido e escarrado”; a expressão veio do francês, em que o verbo “cracher”, escarrar, também significa identidade, donde a palavra “crachat”, escarro, que deu origem ao português “crachá”, designando a plaquinha de identificação que as pessoas trazem no peito; em inglês,  “spit”, cuspo, também é usado como identificação). “Cor de burro quando foge” virou  “corre de burro quando foge” (forma que Castro Lopes sugeriu para corrigir a expressão adequada “cor de burro quando foge”, em que “burro” designa a cor vermelha que um fujão apresenta,  e não o animal; de “burro”, cor, temos palavras como “borro”, designativa do carneiro entre um e dois anos,  e “borracho”, que designa o pombo sem penas, por sua coloração avermelhada,  e possivelmente “borrega”, ovelha de um ano). “Quem tem boca vai a Roma” virou  “quem tem boca vaia – verbo vaiar --Roma” (o correto é exatamente “quem tem boca vai – verbo ir – a Roma”, frase originada das peregrinações a Roma, donde palavras como “romaria” e “romeiro”, associadas à peregrinação). “Ter bicho carpinteiro” virou  “ ter bicho no corpo inteiro” (o correto é “ter bicho-carpinteiro”, referência, segundo Leite de Vasconcelos, ao oxiúro que provoca pruridos anais e movimentos sacudidos). “Quem não tem cão caça com gato” virou  “quem não tem cão caça como gato”, isto é, “sozinho” (o correto é mesmo “quem não tem cão caça com gato”, isto é, quem não tem um instrumento adequado tenta um substituto, pois a necessidade é a mãe da invenção). Essas versões que pretendem corrigir as expressões populares são anticientíficas, sem respaldo documental, sem explicação de como ocorreram as alterações fônicas, e devem ser desprezadas. As versões que circulam na Internet não devem ser levadas a sério.

         Castro Lopes, em suas Origens de anexins, prolóquios, locuções populares, siglas, etc. (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1909), explica-nos a contento muitas coisas interessantes, como, por exemplo, o fato de que IHS não representa a abreviatura de Iesus Hominum Salvator (Jesus Salvador dos homens), nem a sigla de “Jesuíta, homem sábio (ou santo)”, mas apenas a abreviatura em grego do nome de Jesus (iota, eta e sigma) (p. 63-6). Mas, em seus Neologismos indispensáveis (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1909), propõe bobagens, como, por exemplo, para substituir o fr. avalanche, o termo runimol, acrônimo formado das iniciais das palavras ruere (ruir), nix (neve) e moles (massa), isto é, “massa de neve que rui” (p. 27-9).

         Em matéria de etimologia, Castro Lopes também cometeu deslizes graves, como o de tentar derivar carnaval de lupercália ou de canto arval. Mais recentemente, Silveira Bueno (Tratado de semântica brasileira. 4.ed. São Paulo: Saraiva,1965, p. 115) tentou derivar gringo de uma canção americana começada com a expressão “green grow”, que a cavalaria americana cantava no séc. XIX, na época da guerra contra o México, embora o termo gringo já constasse de um dicionário de Esteban de Terreros y Pando,  publicado na Espanha, um século antes da canção americana e da guerra contra o México, segundo informação do Corominas (Diccionario critico etimologico de la lengua castellana. Madrid: Gredos, 1976,s.v.).

          Em matéria de imaginação, Gilles Ménage (1613-1692) ganharia o óscar: em seu Dictionnaire étymologique, de 1694, formado a partir do desenvolvimento de sua obra de 1650, Origines de la langue française, ele “deriva” haricot (feijão) de faba; laquais (lacaio), de verna; e quille (bola) de squilla (sino), por exemplo.  É verdade que Ménage tem virtudes, e muitas de suas etimologias são verdadeiras, mas a sua imaginação para estabelecer a pretensa cadeia evolutiva entre o étimo e a forma atual (esta tão distante fonologicamente daquele) leva o consulente bem intencionado a descrer da obra toda. Teria sido melhor, talvez, que ele tivesse ficado apenas com seus versos galantes e mundanos, mas, certamente, não teria hoje o seu nome lembrado.  Ganhou com suas bobagens mais que os quinze minutos de fama que o artista “pop” Andy Warhol preconizou para os mortais comuns. O que equivale a dizer que a tolice disfarçada em sabedoria rende mais que a erudição e a cautela de um cientista. Sabe-se que foi Eróstrato que, em 356 antes de Cristo, incendiou e destruiu o Templo de Diana (ou  de Artêmis) em Éfeso, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Mas até hoje não se sabe o nome do arquiteto que projetou esse templo.

          Em outras palavras, a mediocridade vale mais que tudo: angaria fãs e aplausos e torna o sucesso bem maior que os meros quinze minutos de glória que Warhol pretendeu que todo mundo  poderia ter...

 

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(Cidade de Vitória, Estado de Espírito Santo, Brasil)



publicado por Do-verbo às 16:44
Domingo, 24 de Agosto de 2014

TRISTEZA DE SER VELHO

(08-12-2012-Pensar)

 

José Augusto Carvalho

 

 

         Acho que foi em Terra dos Homens que Saint-Exupéry escreveu uma bela página a respeito da idade do homem. A idade representa segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, décadas de permanente exercício de aprendizagem de vivências únicas, de alegria, de tristeza, de dor, de encantamento. A idade do homem (homem, aqui, no sentido de ser humano, que inclui também a mulher) é um mistifório de emoções, de pensamentos e de experiências acumulados ao longo dos anos.

         Mas chega um momento em que a idade pesa mais do que podem suportar os ombros ou uma cabeça de mente lúcida e aberta, a contradizer a frase de um pensador da Antiguidade, talvez Hipócrates, para quem a juventude é, não uma fase da existência, mas um estado de espírito, na ideia poética, talvez falsa, de que o que faz a juventude é o ideal.

         Na verdade, ainda que tenha ideais ou a ânsia de viver e de ser útil, o homem (homem aqui novamente em sentido genérico) enfrenta com a idade problemas que não se resolvem nem com vontade nem com bom senso: a carne é fraca, ainda que seja forte o espírito. E por fraqueza da carne entenda-se aquilo que o “acidente de Senectus” produz , no dizer de Augusto dos Anjos: “a miséria anatômica da ruga”. E não me refiro à ruga como a carquilha que estria o corpo e tortura a mente, mas como um símbolo de destruição e de aniquilamento, como uma sanguessuga que leva à degeneração dos tecidos, ao enfraquecimento dos órgãos, ao surgimento de dores, de artrites, de problemas geriátricos inevitáveis.

         Disse eu uma vez, comentando as queixas de Manoel Lobato a respeito da própria velhice, que o triste não é envelhecer, mas não saber envelhecer. Perdoe-me o leitor a palinódia: o triste é envelhecer mesmo. “Melhor idade” para designar a velhice é bobagem ou conversa para boi dormir. A melhor idade é a da juventude, entre os 15 e os 30 anos. E “terceira idade” é outra bobagem ou um contrassenso, porque acredito que só haja duas idades: a do jovem e a do velho. Rendo-me não aos argumentos de Manoel Lobato, porque ele não me contestou, mas aos argumentos da própria vida.

         O poeta maranhense Alfredo de Assis, num soneto chamado “Pranto e riso”, diz com acerto, embora com crueldade: “No pranto da criança não diviso / mágoa nenhuma: é todo luz e encanto. / Tem, nuns restos de sol e paraíso, / toda a ternura matinal de um canto. // Mas de um velho, num rápido sorriso, / mágoas profundas eu percebo entanto./ No pranto da criança há quase riso. / No sorriso do velho há quase pranto.// Um velho ri: é um pôr do sol que chora. / Chora a criança: é como se uma aurora / num chuveiro de pétala se abrisse.// E tem muito mais luz, mais esperança, / a lágrima, nos olhos da criança, / que um sorriso, nos lábios da velhice.”

         Fiquemos com a ironia lúcida de um aparente nonsense de Bernard Shaw: a juventude é uma coisa bonita demais para ser desperdiçada com os jovens.

         A velhice é triste. A velhice é muito triste. A velhice é tristíssima.

 

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(Publicado inicialmente em 10-07-2002)

 

 

Cidade de Vitória * Estado do Espírito Santo * Brasil



publicado por Do-verbo às 22:51

A VELHICE E A VIDA

(Pensar, 7-02-14)

 

 

 

José Augusto Carvalho

 

 

Eu gostaria de ter a minha idade, mas sou mais velho do que eu mesmo. Preocupa-me o avanço da velhice , e vivo como se tivesse alguns anos mais... Ninguém me avisou de que a velhice  dói.  Não me preparei para ela...

Acho que vem do francês as duas condicionais sem a desnecessária  conclusão:  “Se juventude soubesse... se velhice soubesse...”  Muitos velhos talvez quisessem voltar a ser jovens, pela nostalgia que sentem do vigor perdido. Mas talvez isso signifique abrir mão da experiência e do conhecimento acumulados. Querer voltar à juventude é  desejar cair nas mesmas armadilhas e trapaças da vida que calejam a alma e enriquecem a mente. Eu nunca desejaria passar por isso tudo de novo.

Uma frase atribuída a Hipócrates sugere que  a velhice é um estado de espírito, e que é o ideal que faz a pessoa sentir-se jovem. Há mentiras maiores do que essa. Não é o ideal que impede o avanço da fraqueza física nem os carunchos nos ossos.

Perdemos muito tempo dormindo. Se as pessoas dormem oito horas por noite, então dormem a terça parte de um dia, a terça parte de um ano, a terça parte da vida. Um homem de 75 anos passou no mínimo 25 anos dormindo. Um desperdício de tempo, que poderia ser aproveitado pelo menos durante a juventude para que pudéssemos curtir melhor a vida. Mas a natureza madrasta exige que a recuperação física pelo sono nos tome tanto tempo útil da vida...

No conto “O imortal”, do primeiro volume de Escritos avulsos, Machado de Assis, conta a história de Rui de Leão, um franciscano que recebeu do  seu sogro, o cacique Pirajuá , um elixir milagroso que lhe garantiria a imortalidade. Durante mais de duzentos  anos, nosso homem viveu sempre jovem, viajou por vários países, aprendeu inglês, latim, hebraico, francês, italiano, alemão, húngaro, conheceu muitas esposas, viu-as morrer a todas e aos filhos, netos, bisnetos, trinetos , tetranetos , pentanetos... Quando se cansou de viver, bebeu o resto do elixir que o cacique lhe dera  e morreu.  Não desejo a imortalidade, mas invejo o personagem machadiano por ter vivido sempre jovem e ter escolhido o momento de morrer.

Não sei se teria sentido a vida desse personagem. Mas isso não importa.  Talvez o sentido da vida consista em se procurar um sentido para ela. Vale dizer:  a vida não tem sentido nenhum.

De qualquer forma, esse personagem teria tido tempo de sobra para refletir sobre a vida e sobre si mesmo. Talvez ele tenha sentido na própria carne que a morte dói, quando foi condenado à guilhotina, durante a Revolução Francesa, mas a pena foi comutada porque a lâmina afiada lhe atravessava o pescoço sem conseguir matá-lo.

Não precisei ser guilhotinado para entender que a morte dói. Mas a velhice dói muito mais.

 

 

 

Cidade de Vitória * Estado do Espírito Santo * Brasil



publicado por Do-verbo às 22:45

O LEITO SECO DE UM RIO

(08-01-14)

 

José Augusto Carvalho

 

 

Num de seus poemas – cito de memória – diz Hilário Soneghet, um dos maiores poetas capixabas que ombreia com Narciso Araújo ou Benjamin Silva em talento poético: “O velho é um traste que se põe de lado.”

Pôr de lado um traste é, de alguma forma, reparar nele. Mas o velho, às vezes, é um ser quase invisível que poucos notam e que muitos desprezam. Por exemplo: num ônibus cheio, os mais jovens, devidamente sentados, fingem dormir para não se sentirem na obrigação de ceder lugar a um idoso. Há sempre uma expectativa que as situações ensejam. Fingir dormir é uma forma de frustrar a expectativa de um comportamento socialmente desejável.

O desprezo pelo idoso é oficial: o salário do aposentado vai minguando a cada dia, embora as obrigações fiscais continuem as mesmas ou aumentem. E o pior é que é na aposentadoria que o idoso mais precisa de dinheiro para fazer face pelo menos aos problemas de saúde típicos da idade.  O governo petista, que protege bandidos como Cesare Battisti e defende os mensaleiros que minaram a reputação do Partido,  atacou os mais fracos, impondo a taxação dos aposentados, pretensamente para diminuir o déficit da Previdência. Mas esse déficit poderia acabar, sem  desrespeito ao direito adquirido dos velhinhos aposentados, evitando-se ou punindo-se a corrupção em casos flagrantes, como o denunciado pela Folha de São Paulo, edição de domingo, 20-10-2013:  “SUS paga 201 vezes, num único dia, o atendimento a um único cliente em uma clínica de Água Branca, no Piauí.”  Nossos congressistas são os mais caros do mundo. Por que não diminuir pelo menos os privilégios e as mordomias dos nossos parlamentares que podem aposentar-se com um único mandato de 4 anos, com direito a um plano de saúde integral o resto da vida? Sobraria dinheiro para os cofres da Previdência, e até se poderia suprimir a taxação dos aposentados, já que o julgamento do mensalão provou que muitas medidas do governo foram aprovadas graças à falta de caráter e de honestidade de parlamentares venais.

No dizer ainda de Hilário Soneghet, em outro poema que também cito de memória: “Ser velho é ter conselhos para dar. / É ter enfim o dom iluminado / de ensinar as vitórias do futuro / com as derrotas sofridas no passado.”

O problema é que, ainda que o velho tenha conselhos para dar, isso não significa que ele tenha a oportunidade de ser ouvido, nem que haja interesse nos mais jovens em aprender vitórias com as derrotas dele.

Dizia Rabindranath Tagore, poeta indiano, prêmio Nobel de literatura, em seu livro Pássaros Perdidos (Rio de Janeiro: José Olympio, 1952, p. 18), em tradução de Abgar Renault:“Ninguém dá graças ao leito seco do rio pelo seu passado.”

O velho é um leito seco de um rio.

 

 

 

Cidade de Vitória * Estado do Espírito Santo * Brasil



publicado por Do-verbo às 22:34
Quinta-feira, 17 de Julho de 2014

AMOR MEDIEVAL

 

 

       José Augusto Carvalho

 

                                                                      

 

A cada quem seu destino...

 

            De mulher é pouco o falar muito, que todas são uma só, de diferentes rostros, mas a pran de igual felonia. E conto-vos per que faredes de mi gran juízo desto meu guisar de quedar-me solitário e pera mostrar que sandice maior non há que a de fazer-se creúdo da dereiteza de tôdalas mulheres.

             E foi do modo seguinte.

             Muito afazida com as coisas da casa e do lar diziam ser Dona Urraca, dama bem talhada, de muita fremosura e recato. Acaeceu, enton, que o marido, muito mal andante, enfermou de danoso mal que o achantou de vez em caixão de amesurado porte. Aguardei-me de declarar, sem aguça nem adiano, o meu amor de apaixonado sentir, per que non achava de aguisado proceder dizer-lhe que estava cobiçoso de ela, em per diante de tan recente enviudamento. Ao velório fui, muito acordado de morte tan desejada, mas enfingindo sofrença, e louvaminhando de passo calado a albergada dolorência que em mau ponto lhe tirara a ela o grado de viver.

            Non queria eu agravecê-la com o apoer mal prez ou contar que o marido era doneador, mui galanteador de outras damas, aquestas pouco adestradas, per serem desvergonhadas e se darem a tôdolos que lhes pagassem. A viúva semelhava muita desaventurança e careza de saúde, tantas eram as lágrimas doridas que trilhavam seu rostro de alvaiade. Muito desensinado seria de minha parte propor entendença nova de amores con viúva recém, que orava em perante o corpo do marido. Per esso de muito ser cavalheiro foi que só lhe disse, mentireiro, per delicado devotamento:

            — Senhora Dona, non sabedes vós desse marido con que vós agora non sodes mais, porende vos digo que duvidança non há que outro mais honesto en este mundo non acharedes, nem tam virtuoso de tôdalas virtudes de cavalheiro.

               E afirmei-lhe que tôdolos cabelos canos de minha cabeça eu cortaria per câmbio de vê-la viçosa a ela, sem mais doloroso pranto.

               E fui-me.

             Alguns meses quedei-me à sua porta per vê-la de negro vestida entrar da missa, muito desejoso de um olhar seu dela. Mas um dia albergou meu coração façanhuda coragem de achegar-me a ela e falar-lhe de meu sentir.

            — De mi non duvidedes, Senhora Dona, que muito vos amo de amor mais ancho que o mundo; que de tôdalas damas que conhoço, outra non há como vós, de aguisada dereiteza de dona bautizada e cristã. E acharedes en mi, pera correger vossa solitude e pobreza, em juntando casamento comigo, que sou um cavalheiro que non sabedes cujo é o passado, mas que acredita que tenhades en el um futuro aventurado.

              Desbulhei assi minha lazeira de amor, na querência de resposta esperançosa. E acalei-me, à espera do seu guisar, que non tardou, e que me fez trilhar de novo, mal treito, o chão da realidade treda: ela non havia queixume de mi, que me sabia homem de bom proceder, mas apenas aos domingos ela podia acordar-me dereitos de marido, per que em tôdolos outros dias da semana já outros cavalheiros a ocupavam com esses mesteres de cama, e que nem uma solitude sentia nem ouro lhe falecia, em desde que enterrara o esposo.

              Arar com lobos não é aguisado de uma dama que eu pensei de boa formação cristã e virtude numerosa. Muito sanhudo teria eu me quedado, mas faça quis cada quem seu mester pera o qual é nascido. E todo o meu amor per ela se foi, na tristura desso que escuitei de seus próprios lábios. E assi me quedo eu hoje, solitário e triste, per que outra dama nunca mais olhei, descreúdo de tôdalas outras. E nunca mais tornei a vê-la de novo, pera non acender a paixão que ainda teima em quedar-se nos perdudos da minha saudade.

 

 

 

 

 

 

 

 Cidade de Vitória, Estado de Espírito Santo - Brasil



publicado por Do-verbo às 16:55
Quarta-feira, 16 de Julho de 2014

A PASTORINHA

 

José Augusto Carvalho

 

 

 

Eu vos digo que sodes morta, ca sodes muito

  meninha. ( de A Demanda do Santo Graal)

 

 

             De muita alteza está da terra o céu pera contemplar-se Deus das miudices dos homens ou de aprazer-se de suas pequenezas bondadosas. Assi, pois, cresci eu desligado de toda religião, mas à meninha aquesta, mia filha, eu soube educar nas devidas ajuizanças e corduras de endurezada moralidade. Per ao menos era como eu achava. E nenhuma outra de sua idade me parecia haver que mais respeito tivera ao pai ou mais educada se mostrara ser, sem afetação nem aleivosia.

             Provei, venturoso, apesar de viúvo, tôdalas maravilhas que pude, assi per clerezia de amor como por al de mil prazeres e chus. Mas nunca alberguei maior doçura na vida e no coração que aquesse do amor que tinha eu pela mia pastorinha.

            Mas um dia veio um filho d’algo que eu desconhecia ser mazelado de muitos pecados, mas que muita ardura de amor assemelhou ter per mia pastorinha. Pera mister de conhecença se mostrou o forâneo, desentregado de tôdalas intenções maldadosas, e em per dentro do seu coração parecia albergar-se a catividade de sua paixão sincera. Como podia eu prever que era enfinta e mascaramento o que ele leixava parecer sinceridade de propósitos? E permiti que mia meninha e el se encontrassem de arrededor de mi, pera as palavranças de ternura, e uma vez que outra, por miúdos intervalos, eu os leixava um pouco insulados pera algum amoroso toque que lhes fizesse crescer a mútua benquerença, no desejo de se unir em diante do altar de Deus.

               De bom pastor é tosquiar e não esfolar. E então ficou el, frequentando mia casa, se humildando muito contra mi, pera merecer-me a simpatia de futuro sogro.

              Mas eu confiava na mia pastorinha, e mais do que mim sabia ela êsto de como portar-se com ardimento e cordice, nos momentos em que eu os desentregava a ambos os dois de mia presença, pera as abscondidas juras que os enamorados se fazem, na previsão de um futuro espartido a dois.

             Mesmo assi, às vezes, pera referimento de sua ajuizança, eu dizia à mia pastorinha: “Muito vos aconselho, mia meninha, pera que vós vos tenhades mui bem pagada e não sofrerdes o marteiro das desiludices, porque homem, por melhor que aparente ser como mim, pode causar lazeira de muita sofrença no coração de uma donzela.”

             Da razão é alheio quem do sábio despreza o conselho. E ela, boa filha e obediente, nunca achou fadeza de montanheiro nem destoantes protecionismos nos meus aconselhamentos de experiência madura.

             Mas é manhoso todo ardiloso. E um dia chegou então que o mancebo decidiu pedir a mão de mia pastorinha pera com ela liar-se no pera sempre diante de Deus, e eu febremente a outorguei, na tristura de perder a companhia dela e na certeza de não receber em troca o filho que o genro poderia ser pera mi. E comprei o que de melhor pude pera o legado do dote, e preparei com ligeirice o que de melhor pude pera a festa do casamento.

            Com moeda falsa é que se faz trapaça. Bom cavaleiro não há que lhe não venha um dia mal-andança, maiormente aquesse maltreito, como mi, mandadeiro de azarismos, que eu me julgo ter sido, contra a mia pastorinha, que migo até hoje houve solteira vida.

            Em palafrém foi ela, de garnacha e seda guarnida, com véu longo e branco que se arrastava da oussia da capela até a entrada da nave, de branco vestido de louçainhas e frol de laranjeiras a enfeitar-lhe a fronte querida.

            E a igreja aquecia de amontoada gente que o meu coração hospedava na  mia muita amizade, e que ali também esperava pelo noivo, mirando a mia pastorinha com olhos de maravilha per sua beleza e graça. E longadamente esperamos até que noite ficou, de tudo escurecer a igreja. E toda ledice se foi do meu peito, ao ouvir os soluços de dor e de vergonha da mia pastorinha, desprezada no altar, tendo o felão levado com sigo o dote que não merecia.

            Mas o que mais feramente magoou a mia pastorinha e que lhe falsou o coração que nunca mais guariu é que ela acreditou no casamento, e leixou que em seu coldre de tenra carne assestasse a arma do futuro esposo. Gosto primeiro, desgosto derradeiro.

              Ficou-me o neto que se fez meu filho e me chama pai, herdeiro apenas da mia solidão. E na mia pastorinha ficou a descrença nos homens e a tristura que não falecerá em tôdolos dias de sua pobre vida.

 

 

 

 

 

Cidade de Vitória, Estado do Espírito Santo -Brasil



publicado por Do-verbo às 23:33
Domingo, 22 de Junho de 2014

UMA HISTÓRIA NADA INFANTIL

 

 

José Augusto Carvalho

 

 

Era uma vez uma criança a quem chamavam de Maria Doida, entre outros nomes que o povo lhe dava. Ninguém sabia qual era o seu nome certo: Teresa Biruta, Joana a Louca, Antônia Sandice, Branca Maluca, Ana Saloia, Mela o Bico, Pirulito a Menos... Maria Doida tinha mais nomes que o céu estrelas. Por todos se conheciam seus muitos nomes, mas o de batismo, o verdadeiro nome dela, de ninguém se soube.

Maria Doida tinha seis anos quando ganhou muitos nomes. Como toda gente, Maria Doida tinha pai e mãe e morava no alto do morro, num topo de escadaria.

Todos os dias, às seis da tarde, a menina Maria descia as escadas, à espera do pai que vinha do trabalho. Sentava-se lá embaixo, no último degrau, de banho tomado, de roupa limpinha, até que o pai apontasse na esquina, por volta das seis e meia. E ela corria até ele, para beijá-lo e abraçá-lo, e o pai subia as escadas, levando-a ao pescoço, às cavalitas, a cantar cantigas de roda, a contar histórias, para enganar o cansaço de tantos degraus.

Um dia, porém, o pai de Maria Doida não mais voltou. Dizem alguns que morreu num repente, mas do enterro ninguém tem notícia. E a menina Maria de nada soube ou não quis saber. E todos os dias, às seis da tarde, de banho tomado, de roupa limpinha, descia as escadas para esperar o pai, sentada, sozinha, no primeiro degrau. E só bem de noite, sua mãe a vinha buscar, levando-a no colo, adormecida, direto para a cama, sem reza e sem ceia.

E durante muitos e muitos anos, já morta a mãe, a velha Maria Doida ainda descia as escadas, à mesma hora, de banho tomado, de roupa limpinha, e adormecia, sozinha, sentada no primeiro degrau. E, como ninguém mais a levasse adormecida pra cima, ela passava a noite ali mesmo, e só voltava para casa aos primeiros claros do dia, ou ao primeiro canto do galo. E toda gente se habituou a isso: os desocupados e aposentados, que viviam na praça a jogar damas ou dominó, sabiam a hora de voltar a casa, quando viam Maria Doida descer para o primeiro degrau da escadaria: “Já são seis horas! Mela o Bico assinou o ponto!” E nem precisavam de relógio pra terminar o jogo ou para as despedidas.

E quando Maria Doida morreu, o governo mandou colocar um relógio na praça, deu o nome de um político à praça e à escadaria. E toda a gente se esqueceu de Maria Doida. E entrou pela perna do pato e saiu pela perna do pinto, e quem quiser que me conte outras cinco.

E ninguém foi feliz para sempre.

 

*

Cidade de Vitória, ES-Brasil

(Historinha publicada em 1984.)



publicado por Do-verbo às 20:45
Sábado, 21 de Junho de 2014

 O MENINO É  PAI DO HOMEM

(26-XI-13)

 

José Augusto Carvalho

 

Uma frase de Machado de Assis, que serviu de título a um capítulo de um de seus romances, acho que Memórias Póstumas de Brás Cubas, elimina, a meu ver, a responsabilidade do ser humano pelos seus atos e o livra de todos os pecados: “O menino é  pai do homem”.

            Não me lembro do conteúdo desse capítulo. Citei o título de memória. Mas, analisando a frase em si, isolada do romance, imagino que, por essa ideia, se uma tara é genética, não cabe ao tarado a culpa de seus malfeitos; se a má índole é adquirida, é no meio ambiente, na família ou na desagregação social que se deve pôr a culpa. A frase de Machado de Assis significa, salvo melhor juízo,  que o que se faz a uma criança hoje se reflete depois no adulto que ela se tornará. O que o menino suporta, enfrenta ou recebe hoje é que vai decidir o caráter do adulto.

            Se isso é verdade, então não existe o pecado, não existe responsabilidade, não existe o livre-arbítrio. Presume-se a incompetência ou a impossibilidade do indivíduo em vencer as forças negativas, em superar seus traumas ou em decidir seu próprio destino.

            O livre-arbítrio não existe, certamente, para quem crê num deus. Como o destino de uma pessoa está previamente traçado ou já é inteiramente conhecido por esse deus, não importa o esforço que ele faça para melhorar. O que quer que ele pretenda fazer já está previamente decidido por esse deus, se for um deus onisciente... Em outras palavras, que chances teria Pedro de não negar a Cristo por três vezes, antes que o galo cantasse, se o próprio Cristo previra essa traição dele? Cristo teria sido charlatão ou mentiroso, se a profecia dele não se tivesse realizado. O mesmo se diga da traição de Judas, já prevista também. Como poderia um homem fugir do destino ingrato que lhe estava reservado, independentemente de sua vontade? O papel de Judas era necessário aos desígnios da divindade. Para que se realizassem as profecias, para que Jesus morresse pelos homens, Judas teria de fazer o que fez, ainda que não quisesse, ainda que pudesse negar-se a fazer um papel que a humanidade condenaria como traição,  mas que a humanidade deveria agradecer por ter sido seu beijo pretensamente traidor a base  de uma Igreja ou o fundamento de uma religião. Judas não traiu ninguém. Judas foi a chave que abriu uma porta e nem sequer tinha consciência da grandeza de seu papel.

             Mas eu creio no livre-arbítrio, porque não acredito em divindades. Creio na responsabilidade do homem pelos seus atos e no seu poder de escolher seus próprios caminhos.

              Se Machado de Assis tivesse razão, não teria sido um escritor, mas um revoltado contra a humanidade, por ter ficado órfão cedo, por ter sido pobre, ou por ter sido descendente de escravos.

             Machado de Assis enganou-se. O menino que fui não é o pai do homem que sou. Afinal, não tenho nenhuma divindade a espionar o que faço entre quatro paredes ou a decidir o destino de que  sou o único dono e responsável. Eu é que decido o que faço e escolho meus próprios caminhos. Deus, segundo a Bíblia, fez o mundo em seis dias. Como ninguém é de ferro, resolveu descansar no sétimo dia. E nunca mais fez nada, a não ser traçar o destino dos que nele creem. E acabar com o livre-arbítrio.

 

Cidade de Vitória, ES-Brasil



publicado por Do-verbo às 20:19

TRISTEZA DE SER VELHO

 

 

José Augusto Carvalho

 

 

            Acho que foi em Terra dos Homens que Saint-Exupéry escreveu uma bela página a respeito da idade do homem. A idade representa segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, décadas de permanente exercício de aprendizagem de vivências únicas, de alegria, de tristeza, de dor, de encantamento. A idade do homem (homem, aqui, no sentido de ser humano, que inclui também a mulher) é um mistifório de emoções, de pensamentos e de experiências acumulados ao longo dos anos.

            Mas chega um momento em que a idade pesa mais do que podem suportar os ombros ou uma cabeça de mente lúcida e aberta, a contradizer a frase de um pensador da Antiguidade, talvez Hipócrates, para quem a juventude é, não uma fase da existência, mas um estado de espírito, na ideia poética, talvez falsa, de que o que faz a juventude é o ideal.

            Na verdade, ainda que tenha ideais ou a ânsia de viver e de ser útil, o homem (homem aqui novamente em sentido genérico) enfrenta com a idade problemas que não se resolvem nem com vontade nem com bom senso: a carne é fraca, ainda que seja forte o espírito. E por fraqueza da carne entenda-se aquilo que o “acidente de Senectus” produz , no dizer de Augusto dos Anjos: “a miséria anatômica da ruga”. E não me refiro à ruga como a carquilha que estria o corpo e tortura a mente, mas como um símbolo de destruição e de aniquilamento, como uma sanguessuga que leva à degeneração dos tecidos, ao enfraquecimento dos órgãos, ao surgimento de dores, de artrites, de problemas geriátricos inevitáveis.

            Disse eu uma vez, comentando as queixas do contista Manoel Lobato a respeito da própria velhice, que o triste não é envelhecer, mas não saber envelhecer. Perdoe-me o leitor a palinódia: o triste é envelhecer mesmo. “Melhor idade” para designar a velhice é bobagem ou conversa para boi dormir. A melhor idade é a da juventude, entre os 15 e os 30 anos. E “terceira idade” é outra bobagem ou um contrassenso, porque acredito que só haja duas idades: a do jovem e a do velho. Rendo-me não aos argumentos de Manoel Lobato, porque ele não me contestou, mas aos argumentos da própria vida.

            O poeta maranhense Alfredo de Assis, num soneto chamado “Pranto e riso”, diz com acerto, embora com crueldade: “No pranto da criança não diviso / mágoa nenhuma: é todo luz e encanto. / Tem, nuns restos de sol e paraíso, / toda a ternura matinal de um canto. // Mas de um velho, num rápido sorriso, / mágoas profundas eu percebo entanto./ No pranto da criança há quase riso. / No sorriso do velho há quase pranto.// Um velho ri: é um pôr do sol que chora. / Chora a criança: é como se uma aurora / num chuveiro de pétala se abrisse.// E tem muito mais luz, mais esperança, / a lágrima, nos olhos da criança, / que um sorriso, nos lábios da velhice.”

            Fiquemos com a ironia lúcida de um aparente nonsense de Bernard Shaw: a juventude é uma coisa bonita demais para ser desperdiçada com os jovens.

            A velhice é triste. A velhice é muito triste. A velhice é tristíssima.

 

Cidade de Vitória, ES-Brasil



publicado por Do-verbo às 12:05
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