Quinta-feira, 27 de Novembro de 2014

LIÇÕES INADEQUADAS

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José Augusto Carvalho

        

         O nome cesariana, que designa a operação de parto, não tem absolutamente nada a ver com Júlio César. O nome próprio César, aliás, que deu origem ao nome genérico dos imperadores alemães e russos (kaiser e czar ou tzar, respectivamente) é de origem etrusca, e não latina. São informações de Ernout e Meillet, no seu Dictionnaire étymologique de la langue latine (Paris: Klincksieck, 1967, s.v. Caesar). O nome cesariana relaciona-se com o verbo caedo, -is, cecidi, caesum, caedere, que deu origem ao fr. ciseaux (tesoura), ao ing. scissors (tesoura), à  raiz –cida (de homicida, suicida, formicida, etc.) e a nomes como cisão, circuncisão, incisão, rescisão, precisão (corte prévio, isto é, eliminação do supérfluo), etc.

         O Dicionário etimológico da língua portuguesa, de Antenor Nascentes, confirma: antes de Júlio César, muita gente já havia nascido por meio de cesariana, inclusive Cipião, o Africano, que viveu antes de César, quando essa operação já se chamava assim.

         É comum a crença fácil na etimologia popular, que não explica nada, mas alimenta a imaginação do leigo curioso. O nome forró, por exemplo, não tem nada a ver com o inglês for all, apesar do filme com esse nome e da tradição generalizada. Forró é apenas a abreviatura de forrobodó, que for all não explica. Basta consultar o Aurélio para atestar o que digo. O Dicionário do folclore brasileiro, de Câmara Cascudo, esclarece isso, e elimina, indiretamente, essa bobagem inventada e divulgada por quem não tem conhecimento, mas tem muita imaginação.

         Aliás, é extensa a lista de falsas etimologias: sincero não tem nada a ver com “sem cera” (o sin-, de sincero, tem relação com o sim- de simples; e o –cero tem relação com –cel-, de excelso ou com  o –cer- de prócero); pontífice nada tem a ver com construtor de pontes (o pontifex latino sempre designou o sacerdote romano, sem relação com o verbo facere, fazer, e ainda menos com pons, ponte); religião nada tem a ver com o verbo ligar, mas com ler. A raiz da palavra religião se relaciona com o –lig- de diligente ou inteligente ou com –leg-, lec-, -lei, le- de eleger, lecionar, eleitor e ler, respectivamente. O re- inicial de religião é prefixo oriundo de red(i), vir, voltar, que aparece em redivivo ou relíquia.   Uma consulta ao Dictionnaire étymologique de la langue latine, de Ernout & Meillet atestará essas informações.

Circulam na Internet versões “corrigidas” de expressões populares e até da trova popular – “Batatinha quando nasce/ se esparrama pelo chão. / Menininha quando dorme / põe a mão no coração.” O segundo verso foi corrigido:  “batatinha quando nasce espalha a rama pelo chão” (o correto mesmo é “se esparrama pelo chão”). “Cuspido e escarrado” virou “esculpido e encarnado” (lição difundida por Duarte Nunes de Lião, no séc. XVI; o correto é realmente “cuspido e escarrado”; a expressão veio do francês, em que o verbo “cracher”, escarrar, também significa identidade, donde a palavra “crachat”, escarro, que deu origem ao português “crachá”, designando a plaquinha de identificação que as pessoas trazem no peito; em inglês,  “spit”, cuspo, também é usado como identificação). “Cor de burro quando foge” virou  “corre de burro quando foge” (forma que Castro Lopes sugeriu para corrigir a expressão adequada “cor de burro quando foge”, em que “burro” designa a cor vermelha que um fujão apresenta,  e não o animal; de “burro”, cor, temos palavras como “borro”, designativa do carneiro entre um e dois anos,  e “borracho”, que designa o pombo sem penas, por sua coloração avermelhada,  e possivelmente “borrega”, ovelha de um ano). “Quem tem boca vai a Roma” virou  “quem tem boca vaia – verbo vaiar --Roma” (o correto é exatamente “quem tem boca vai – verbo ir – a Roma”, frase originada das peregrinações a Roma, donde palavras como “romaria” e “romeiro”, associadas à peregrinação). “Ter bicho carpinteiro” virou  “ ter bicho no corpo inteiro” (o correto é “ter bicho-carpinteiro”, referência, segundo Leite de Vasconcelos, ao oxiúro que provoca pruridos anais e movimentos sacudidos). “Quem não tem cão caça com gato” virou  “quem não tem cão caça como gato”, isto é, “sozinho” (o correto é mesmo “quem não tem cão caça com gato”, isto é, quem não tem um instrumento adequado tenta um substituto, pois a necessidade é a mãe da invenção). Essas versões que pretendem corrigir as expressões populares são anticientíficas, sem respaldo documental, sem explicação de como ocorreram as alterações fônicas, e devem ser desprezadas. As versões que circulam na Internet não devem ser levadas a sério.

         Castro Lopes, em suas Origens de anexins, prolóquios, locuções populares, siglas, etc. (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1909), explica-nos a contento muitas coisas interessantes, como, por exemplo, o fato de que IHS não representa a abreviatura de Iesus Hominum Salvator (Jesus Salvador dos homens), nem a sigla de “Jesuíta, homem sábio (ou santo)”, mas apenas a abreviatura em grego do nome de Jesus (iota, eta e sigma) (p. 63-6). Mas, em seus Neologismos indispensáveis (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1909), propõe bobagens, como, por exemplo, para substituir o fr. avalanche, o termo runimol, acrônimo formado das iniciais das palavras ruere (ruir), nix (neve) e moles (massa), isto é, “massa de neve que rui” (p. 27-9).

         Em matéria de etimologia, Castro Lopes também cometeu deslizes graves, como o de tentar derivar carnaval de lupercália ou de canto arval. Mais recentemente, Silveira Bueno (Tratado de semântica brasileira. 4.ed. São Paulo: Saraiva,1965, p. 115) tentou derivar gringo de uma canção americana começada com a expressão “green grow”, que a cavalaria americana cantava no séc. XIX, na época da guerra contra o México, embora o termo gringo já constasse de um dicionário de Esteban de Terreros y Pando,  publicado na Espanha, um século antes da canção americana e da guerra contra o México, segundo informação do Corominas (Diccionario critico etimologico de la lengua castellana. Madrid: Gredos, 1976,s.v.).

          Em matéria de imaginação, Gilles Ménage (1613-1692) ganharia o óscar: em seu Dictionnaire étymologique, de 1694, formado a partir do desenvolvimento de sua obra de 1650, Origines de la langue française, ele “deriva” haricot (feijão) de faba; laquais (lacaio), de verna; e quille (bola) de squilla (sino), por exemplo.  É verdade que Ménage tem virtudes, e muitas de suas etimologias são verdadeiras, mas a sua imaginação para estabelecer a pretensa cadeia evolutiva entre o étimo e a forma atual (esta tão distante fonologicamente daquele) leva o consulente bem intencionado a descrer da obra toda. Teria sido melhor, talvez, que ele tivesse ficado apenas com seus versos galantes e mundanos, mas, certamente, não teria hoje o seu nome lembrado.  Ganhou com suas bobagens mais que os quinze minutos de fama que o artista “pop” Andy Warhol preconizou para os mortais comuns. O que equivale a dizer que a tolice disfarçada em sabedoria rende mais que a erudição e a cautela de um cientista. Sabe-se que foi Eróstrato que, em 356 antes de Cristo, incendiou e destruiu o Templo de Diana (ou  de Artêmis) em Éfeso, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Mas até hoje não se sabe o nome do arquiteto que projetou esse templo.

          Em outras palavras, a mediocridade vale mais que tudo: angaria fãs e aplausos e torna o sucesso bem maior que os meros quinze minutos de glória que Warhol pretendeu que todo mundo  poderia ter...

 

pena_e_tinteiro.jpg

 

(Cidade de Vitória, Estado de Espírito Santo, Brasil)



publicado por Do-verbo às 16:44
Segunda-feira, 17 de Novembro de 2014

tormenta.jpg

 

É sempre o mesmo desconforto!

A chuva, o vento, a tempestade…

Fechada a barra,

vazio o porto,

há um vazio na cidade,

um vazio que nos amarra

como os barcos parados,

ao largo fundeados.

 

Galopes de fúria das águas

que salgam as mágoas

dos olhos molhados.

Gaivotas em terra, transidas

de frio nos molhes do porto.

Asas recolhidas,

corpos fustigados

p’los látegos do desconforto.

 

E os barcos parados,

ao largo fundeados,

descendo, subindo

ao sabor das vagas

que investem rugindo…

E a chuva caindo!

E o vento ululante de pragas

agredindo o porto…

E a barra fechada

e a cidade ouvindo,

ouvindo calada,

sofrendo calada

tanto desconforto.

 

E os barcos parados,

ao largo fundeados…

E a barra fechada

negando a largada.

 

*

José-Augusto de Carvalho

16 de Novembro de 2014.

Viana*Évora*Portugal

 

 

 



publicado por Do-verbo às 00:54
Sexta-feira, 14 de Novembro de 2014

peonza.jpg

 

Que o tempo de hoje se situe e seja o desafio!

Que a folha desprendida ensaie o rodopio!

 

Que as dores das origens

se evadam nas manhãs

e sangrem as vertigens

nos outonais delíquios das romãs!

 

Que após o longo tempo em gestação,

das húmidas entranhas brotem lanças!

Lanças subindo,  raio acima, a tentação

da luz  que vem do céu no olhar duma criança.

 

Que venha, num sinal tão manso de evangelho,

anunciar o pão,

o pão da fome, o pão do menino e do velho

que, ali no largo, jogam ao pião!

 

 

José-Augusto de Carvalho

13 de Novembro de 2014.

Viana*Évora*Portugal

 



publicado por Do-verbo às 11:01
Sexta-feira, 07 de Novembro de 2014

Portugal_Democrático.jpeg

 

Mais um Inverno frio nos deixava…

Mais uma Primavera prometia…

E sempre uma esperança pontilhava

de estrelas este céu que se fechava

ao rútilo esplendor dum claro dia!

 

E sempre esta esperança que morria

em cada frustração que nos matava!

E sempre o desespero arremetia

na força renovada que nos dava

a Fénix que das cinzas renascia!

 

Ai, tanto se morria e renascia!

E sempre esta esperança acalentava.

Que fértil terra de húmus e porfia

a força dava à força que faltava

nas horas em que a vida mais doía?

 

De sangue e desespero se amassava

o pão que noite adentro se comia!

De sol a sol, o corpo tudo dava

a troco duma jorna que minguava

enquanto o desespero mais crescia.

 

Ah, mas, na sombra, a noite murmurava

enleios, numa terna melodia!

E antes de adormecer, já madrugava

nos versos da canção que prometia

livre e fraterna a terra que chegava!

 

Chegava a Liberdade que cantava

lusíada, em feliz polifonia,

o fim do pesadelo que matava

no dia todo em luz que despertava

a vida que chorava de alegria!

 

O pátrio povo em armas devolvia

o berço que das trevas libertava

ao povo que sem armas acudia.

E um povo todo irmão se estremecia

no imenso e terno abraço que se dava.

 

Navegar é preciso, prometia,

agora que o viver se precisava!

Nos braços embalada, a pátria ouvia!

E quanto mais ouvia mais se dava

ao sonho que se ousava e florescia.

 

 

José-Augusto de Carvalho

27 de Outubro de 2014.

Viana*Évora*Portugal



publicado por Do-verbo às 22:27
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