Domingo, 22 de Junho de 2014

UMA HISTÓRIA NADA INFANTIL

 

 

José Augusto Carvalho

 

 

Era uma vez uma criança a quem chamavam de Maria Doida, entre outros nomes que o povo lhe dava. Ninguém sabia qual era o seu nome certo: Teresa Biruta, Joana a Louca, Antônia Sandice, Branca Maluca, Ana Saloia, Mela o Bico, Pirulito a Menos... Maria Doida tinha mais nomes que o céu estrelas. Por todos se conheciam seus muitos nomes, mas o de batismo, o verdadeiro nome dela, de ninguém se soube.

Maria Doida tinha seis anos quando ganhou muitos nomes. Como toda gente, Maria Doida tinha pai e mãe e morava no alto do morro, num topo de escadaria.

Todos os dias, às seis da tarde, a menina Maria descia as escadas, à espera do pai que vinha do trabalho. Sentava-se lá embaixo, no último degrau, de banho tomado, de roupa limpinha, até que o pai apontasse na esquina, por volta das seis e meia. E ela corria até ele, para beijá-lo e abraçá-lo, e o pai subia as escadas, levando-a ao pescoço, às cavalitas, a cantar cantigas de roda, a contar histórias, para enganar o cansaço de tantos degraus.

Um dia, porém, o pai de Maria Doida não mais voltou. Dizem alguns que morreu num repente, mas do enterro ninguém tem notícia. E a menina Maria de nada soube ou não quis saber. E todos os dias, às seis da tarde, de banho tomado, de roupa limpinha, descia as escadas para esperar o pai, sentada, sozinha, no primeiro degrau. E só bem de noite, sua mãe a vinha buscar, levando-a no colo, adormecida, direto para a cama, sem reza e sem ceia.

E durante muitos e muitos anos, já morta a mãe, a velha Maria Doida ainda descia as escadas, à mesma hora, de banho tomado, de roupa limpinha, e adormecia, sozinha, sentada no primeiro degrau. E, como ninguém mais a levasse adormecida pra cima, ela passava a noite ali mesmo, e só voltava para casa aos primeiros claros do dia, ou ao primeiro canto do galo. E toda gente se habituou a isso: os desocupados e aposentados, que viviam na praça a jogar damas ou dominó, sabiam a hora de voltar a casa, quando viam Maria Doida descer para o primeiro degrau da escadaria: “Já são seis horas! Mela o Bico assinou o ponto!” E nem precisavam de relógio pra terminar o jogo ou para as despedidas.

E quando Maria Doida morreu, o governo mandou colocar um relógio na praça, deu o nome de um político à praça e à escadaria. E toda a gente se esqueceu de Maria Doida. E entrou pela perna do pato e saiu pela perna do pinto, e quem quiser que me conte outras cinco.

E ninguém foi feliz para sempre.

 

*

Cidade de Vitória, ES-Brasil

(Historinha publicada em 1984.)



publicado por Do-verbo às 20:45
Sábado, 21 de Junho de 2014

 O MENINO É  PAI DO HOMEM

(26-XI-13)

 

José Augusto Carvalho

 

Uma frase de Machado de Assis, que serviu de título a um capítulo de um de seus romances, acho que Memórias Póstumas de Brás Cubas, elimina, a meu ver, a responsabilidade do ser humano pelos seus atos e o livra de todos os pecados: “O menino é  pai do homem”.

            Não me lembro do conteúdo desse capítulo. Citei o título de memória. Mas, analisando a frase em si, isolada do romance, imagino que, por essa ideia, se uma tara é genética, não cabe ao tarado a culpa de seus malfeitos; se a má índole é adquirida, é no meio ambiente, na família ou na desagregação social que se deve pôr a culpa. A frase de Machado de Assis significa, salvo melhor juízo,  que o que se faz a uma criança hoje se reflete depois no adulto que ela se tornará. O que o menino suporta, enfrenta ou recebe hoje é que vai decidir o caráter do adulto.

            Se isso é verdade, então não existe o pecado, não existe responsabilidade, não existe o livre-arbítrio. Presume-se a incompetência ou a impossibilidade do indivíduo em vencer as forças negativas, em superar seus traumas ou em decidir seu próprio destino.

            O livre-arbítrio não existe, certamente, para quem crê num deus. Como o destino de uma pessoa está previamente traçado ou já é inteiramente conhecido por esse deus, não importa o esforço que ele faça para melhorar. O que quer que ele pretenda fazer já está previamente decidido por esse deus, se for um deus onisciente... Em outras palavras, que chances teria Pedro de não negar a Cristo por três vezes, antes que o galo cantasse, se o próprio Cristo previra essa traição dele? Cristo teria sido charlatão ou mentiroso, se a profecia dele não se tivesse realizado. O mesmo se diga da traição de Judas, já prevista também. Como poderia um homem fugir do destino ingrato que lhe estava reservado, independentemente de sua vontade? O papel de Judas era necessário aos desígnios da divindade. Para que se realizassem as profecias, para que Jesus morresse pelos homens, Judas teria de fazer o que fez, ainda que não quisesse, ainda que pudesse negar-se a fazer um papel que a humanidade condenaria como traição,  mas que a humanidade deveria agradecer por ter sido seu beijo pretensamente traidor a base  de uma Igreja ou o fundamento de uma religião. Judas não traiu ninguém. Judas foi a chave que abriu uma porta e nem sequer tinha consciência da grandeza de seu papel.

             Mas eu creio no livre-arbítrio, porque não acredito em divindades. Creio na responsabilidade do homem pelos seus atos e no seu poder de escolher seus próprios caminhos.

              Se Machado de Assis tivesse razão, não teria sido um escritor, mas um revoltado contra a humanidade, por ter ficado órfão cedo, por ter sido pobre, ou por ter sido descendente de escravos.

             Machado de Assis enganou-se. O menino que fui não é o pai do homem que sou. Afinal, não tenho nenhuma divindade a espionar o que faço entre quatro paredes ou a decidir o destino de que  sou o único dono e responsável. Eu é que decido o que faço e escolho meus próprios caminhos. Deus, segundo a Bíblia, fez o mundo em seis dias. Como ninguém é de ferro, resolveu descansar no sétimo dia. E nunca mais fez nada, a não ser traçar o destino dos que nele creem. E acabar com o livre-arbítrio.

 

Cidade de Vitória, ES-Brasil



publicado por Do-verbo às 20:19
Sábado, 21 de Junho de 2014

TRISTEZA DE SER VELHO

 

 

José Augusto Carvalho

 

 

            Acho que foi em Terra dos Homens que Saint-Exupéry escreveu uma bela página a respeito da idade do homem. A idade representa segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, décadas de permanente exercício de aprendizagem de vivências únicas, de alegria, de tristeza, de dor, de encantamento. A idade do homem (homem, aqui, no sentido de ser humano, que inclui também a mulher) é um mistifório de emoções, de pensamentos e de experiências acumulados ao longo dos anos.

            Mas chega um momento em que a idade pesa mais do que podem suportar os ombros ou uma cabeça de mente lúcida e aberta, a contradizer a frase de um pensador da Antiguidade, talvez Hipócrates, para quem a juventude é, não uma fase da existência, mas um estado de espírito, na ideia poética, talvez falsa, de que o que faz a juventude é o ideal.

            Na verdade, ainda que tenha ideais ou a ânsia de viver e de ser útil, o homem (homem aqui novamente em sentido genérico) enfrenta com a idade problemas que não se resolvem nem com vontade nem com bom senso: a carne é fraca, ainda que seja forte o espírito. E por fraqueza da carne entenda-se aquilo que o “acidente de Senectus” produz , no dizer de Augusto dos Anjos: “a miséria anatômica da ruga”. E não me refiro à ruga como a carquilha que estria o corpo e tortura a mente, mas como um símbolo de destruição e de aniquilamento, como uma sanguessuga que leva à degeneração dos tecidos, ao enfraquecimento dos órgãos, ao surgimento de dores, de artrites, de problemas geriátricos inevitáveis.

            Disse eu uma vez, comentando as queixas do contista Manoel Lobato a respeito da própria velhice, que o triste não é envelhecer, mas não saber envelhecer. Perdoe-me o leitor a palinódia: o triste é envelhecer mesmo. “Melhor idade” para designar a velhice é bobagem ou conversa para boi dormir. A melhor idade é a da juventude, entre os 15 e os 30 anos. E “terceira idade” é outra bobagem ou um contrassenso, porque acredito que só haja duas idades: a do jovem e a do velho. Rendo-me não aos argumentos de Manoel Lobato, porque ele não me contestou, mas aos argumentos da própria vida.

            O poeta maranhense Alfredo de Assis, num soneto chamado “Pranto e riso”, diz com acerto, embora com crueldade: “No pranto da criança não diviso / mágoa nenhuma: é todo luz e encanto. / Tem, nuns restos de sol e paraíso, / toda a ternura matinal de um canto. // Mas de um velho, num rápido sorriso, / mágoas profundas eu percebo entanto./ No pranto da criança há quase riso. / No sorriso do velho há quase pranto.// Um velho ri: é um pôr do sol que chora. / Chora a criança: é como se uma aurora / num chuveiro de pétala se abrisse.// E tem muito mais luz, mais esperança, / a lágrima, nos olhos da criança, / que um sorriso, nos lábios da velhice.”

            Fiquemos com a ironia lúcida de um aparente nonsense de Bernard Shaw: a juventude é uma coisa bonita demais para ser desperdiçada com os jovens.

            A velhice é triste. A velhice é muito triste. A velhice é tristíssima.

 

Cidade de Vitória, ES-Brasil



publicado por Do-verbo às 12:05
Quarta-feira, 18 de Junho de 2014

HAICAIS III

 

 

José Augusto Carvalho

 

 

 

Minha angústia é exemplar:

Eu me perdi de mim mesmo,

Quando tentei me encontrar.

 

Se Cristo voltasse ao povo,

Os evangélicos iriam

Crucificá-Lo de novo.

 

E “depois deste desterro”

Talvez eu faço por onde

Não ir ao meu próprio enterro.

  

 

Eis a implicação dos ateus:

Se Deus fez tudo do nada,

O nada é a essência de Deus.

 

Só pela honra o homem se mede.

É por isso que o político

É só um animal que fede.

 

 

Tenho horror a políticos, confesso.

Estou cansado de pagar impostos

Pra sustentar pilantras do Congresso.

 

Perdão a mim mesmo rogo:

Matei em mim a criança

Na ânsia de crescer logo.

 

Esta verdade salta aos olhos meus:

Se Deus tem o poder de vida e morte,

O menor, no Brasil, então é Deus.

   

Da religião foi o diabo o inventor

Para que o homem ingenuamente o sirva

Mas na ilusão de que serve ao Senhor.

 

Perdoe-me se sou assim,

Mas eu me tornei o resto

Do que soçobrou de mim

 

Se Deus é onipresente, além de eterno,

E se o inferno é algum lugar que existe,

Deus certamente está também no inferno.

 

O mundo que eu sonho rui,

E resta só a saudade

Daquilo que eu nunca fui.

 

Criado o mundo, Deus, com a alma cansada,

Quis descansar, espreguiçou, dormiu,

E desde então não quis fazer mais nada.

 

Capitu... Diadorim...

O melhor já foi criado!

Não sobrou nada pra mim!...

 

Cansado de não ter uma plateia

Deus fez o homem pra ser adorado

E ainda não viu burrice nessa ideia.

 

Eu da vida nada espero.

Na escala de zero a dez,

Fiquei abaixo do zero.

 

O velho já não sabe o que fazer:

É covarde demais para matar-se

Mas lhe falta coragem de viver.

 

Não sou bom, não sou mau. Eu sou assim:      

Perdi a infância e a adolescência, e tanto

Que me tornei o que sobrou de mim.

 

Ideal que me proponho:

Sonhar a vida que levo,

Levando a vida que eu sonho.

 

Quando eu morrer, um fã devotado

Me inventará um milagre

Para eu ser canonizado.

 

Nascer, viver, morrer... a vida é assim.

Quando se morre, a morte é para sempre,

E nada recomeça após o fim.

 

Se o mal te atinge, pondera:

Pois, por mais que dure o inverno,

Sempre chega a primavera.

 

Pus no atril a partitura

E executei sem compassos

Os dós da minha amargura.

 

A criança que há em mim desponta

E eu invento a minha vida

Num mundo do faz de conta.

 

Já não há  mais quem aguente:

Políticos são prova viva

De que Deus odeia a gente.

 

Uma verdade sem graça:

A gente morre um pouquinho

A cada dia que passa.

 

O sexo engorda – dizias.

Então vou passar o tempo

Te enchendo de calorias.

 

Melhor idade? – Tolice.

Melhor idade é a do jovem.

Por que não dizer “velhice”? 



publicado por Do-verbo às 17:55
Segunda-feira, 16 de Junho de 2014

O SONHO E OS MITOS

 

 

José Augusto Carvalho

 

O sonho, esse conjunto de sons e  imagens quase sempre surrealistas que nos vem durante o sono, mesmo contra a nossa vontade, batizou estranhamente o ideal por que lutamos e que constitui, às vezes, o objetivo principal da vida.  Como uma fantasia absurda que temos durante o sono pôde também designar, em sentido figurado,  o que nos humaniza e dá um simulacro de sentido à vida?

Dizem que o sonho, no sentido próprio,  é manifestação do subconsciente ou uma prova de que o cérebro está sempre funcionando. Não sei por quê, o sonho nos homens é em preto e branco, mas, nas mulheres – dizem os entendidos –,  o sonho é colorido. Por ser fantasioso e incoerente, o sonho não pode ser interpretado racionalmente.  A ciência já comprovou que não existe sonho premonitório, a não ser na ficção. A história de José do Egito que decifrou os sonhos do faraó e lhe conquistou as graças (Gen. 40 e 41) é apenas mais uma das divertidas invenções de Moisés, o autor dos primeiros livros da Bíblia e de outros  mitos bíblicos, como o dilúvio ou a história fantasiosa de uma serpente a tentar a segunda mulher de Adão (Gen. 3, 1-6.) A primeira foi Lilith; Eva foi sua sucessora.  Se alguém disser que houve um tempo em que os animais falavam, está aí esse capítulo do primeiro livro da Bíblia a mostrar que pelo menos as cobras falavam, embora se saiba que a serpente seja apenas um dos disfarces do mitológico deus do mal... O mais curioso desses mitos lembra a Medusa, que transformava em pedra as pessoas que a olhassem de frente:  o da mulher de Ló que virou estátua de sal ao olhar para trás para ver  a destruição de Sodoma e Gomorra (Gen. 19, 26.). Aliás, o Noé e sua família lembram a versão mitológica de Deucalião e Pirra, que repovoaram o mundo depois do dilúvio. Se bem me lembram as leituras adolescentes dos romances de José de Alencar, em O Guarani, no final do romance,  há uma  versão indígena do dilúvio em que Ceci e Peri representam o casal destinado à perpetuação da espécie. Os mitos se repetem em todas as religiões. Já por isso,  Lévi-Strauss, no estudo em que propõe as unidades constitutivas dos mitos, ou “mitemas”, dizia que os mitos, “aparentemente arbitrários, se reproduzem com os mesmos caracteres e segundo os mesmos detalhes, nas diversas regiões do mundo” (LÉVI-STRAUSS, Claude. A estrutura dos mitos. In: ---. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p.  239).

Acho que foi Luís Fernando Veríssimo que se manifestou, numa crônica, sobre o sonho, amaldiçoando-o por ser algo que nos chega sem  ser  desejado, independente de nossa vontade. Acho, no entanto, que o sonho é uma forma de nos mantermos vivos quando perdemos parte de nossa vida a dormir. Um homem de 75 anos passou  25 anos dormindo. Sonhar é diminuir um pouco essa perda significativa do nosso tempo de vida, desde que nos esforcemos para que o sonho não seja esquecido quando acordamos. Afinal, dizem os entendidos, todos nós sonhamos sempre que estamos dormindo. Mas pensamos que não sonhamos porque nos esquecemos do sonho quando acordamos. E, por mais longo que o sonho possa parecer, é sempre curto e quase sempre precede os instantes finais do sono, quando estamos prestes a acordar.

Acho que é pelo que há de fantasioso e suprarreal que os sonhos são sempre maravilhosos, ainda que se manifestem como pesadelos. Quem sabe se acreditar numa vida depois da morte não seja também uma suprarrealidade que as religiões acalentam? Bendigamos os sonhos, no próprio e no figurado. São uma prova de que estamos vivos.

 

(Suplemento Pensar do jornal A Gazeta, cidade de Vitória, ES-Brasil,  14-06-14)



publicado por Do-verbo às 12:34
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