UMA HISTÓRIA NADA INFANTIL
José Augusto Carvalho
Era uma vez uma criança a quem chamavam de Maria Doida, entre outros nomes que o povo lhe dava. Ninguém sabia qual era o seu nome certo: Teresa Biruta, Joana a Louca, Antônia Sandice, Branca Maluca, Ana Saloia, Mela o Bico, Pirulito a Menos... Maria Doida tinha mais nomes que o céu estrelas. Por todos se conheciam seus muitos nomes, mas o de batismo, o verdadeiro nome dela, de ninguém se soube.
Maria Doida tinha seis anos quando ganhou muitos nomes. Como toda gente, Maria Doida tinha pai e mãe e morava no alto do morro, num topo de escadaria.
Todos os dias, às seis da tarde, a menina Maria descia as escadas, à espera do pai que vinha do trabalho. Sentava-se lá embaixo, no último degrau, de banho tomado, de roupa limpinha, até que o pai apontasse na esquina, por volta das seis e meia. E ela corria até ele, para beijá-lo e abraçá-lo, e o pai subia as escadas, levando-a ao pescoço, às cavalitas, a cantar cantigas de roda, a contar histórias, para enganar o cansaço de tantos degraus.
Um dia, porém, o pai de Maria Doida não mais voltou. Dizem alguns que morreu num repente, mas do enterro ninguém tem notícia. E a menina Maria de nada soube ou não quis saber. E todos os dias, às seis da tarde, de banho tomado, de roupa limpinha, descia as escadas para esperar o pai, sentada, sozinha, no primeiro degrau. E só bem de noite, sua mãe a vinha buscar, levando-a no colo, adormecida, direto para a cama, sem reza e sem ceia.
E durante muitos e muitos anos, já morta a mãe, a velha Maria Doida ainda descia as escadas, à mesma hora, de banho tomado, de roupa limpinha, e adormecia, sozinha, sentada no primeiro degrau. E, como ninguém mais a levasse adormecida pra cima, ela passava a noite ali mesmo, e só voltava para casa aos primeiros claros do dia, ou ao primeiro canto do galo. E toda gente se habituou a isso: os desocupados e aposentados, que viviam na praça a jogar damas ou dominó, sabiam a hora de voltar a casa, quando viam Maria Doida descer para o primeiro degrau da escadaria: “Já são seis horas! Mela o Bico assinou o ponto!” E nem precisavam de relógio pra terminar o jogo ou para as despedidas.
E quando Maria Doida morreu, o governo mandou colocar um relógio na praça, deu o nome de um político à praça e à escadaria. E toda a gente se esqueceu de Maria Doida. E entrou pela perna do pato e saiu pela perna do pinto, e quem quiser que me conte outras cinco.
E ninguém foi feliz para sempre.
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Cidade de Vitória, ES-Brasil
(Historinha publicada em 1984.)